Texto extraído do seguinte endereço: Revista "Mistérios de Orunmilá"
O chacoalhar dos balangandãs há tempos deixou de ser escutado pelas ruas e vielas das cidades baianas. Alguns exemplares são encontrados em pontos turísticos como o Mercado Modelo e o Pelourinho, além de algumas joalherias. A maioria é apenas banhada em prata, vendido como amuleto de proteção e boa sorte e geralmente usado como enfeite em alguma prateleira de lembranças de viagem. Pouco é visto ou sentido sobre o significado histórico do balangandã, usado preso à cintura pelas mulheres negras baianas entre os séculos XVIII e XIX. É um emblema de resistência, luta e fé que marca o protagonismo delas na luta contra a escravidão e opressão dos brancos. A joia forma uma penca composta de pequenas pecinhas penduradas vinculadas ao culto dos Orixás, às práticas católicas e ao islamismo dos escravos muçulmanos, os malês, que foram trazidos aos milhares para a Bahia naquele período. A eles é creditada sua confecção, por suas técnicas aprimoradas de fundição de metais.
Os balangandãs eram feitos em prata, majoritariamente, ou ouro. Eram usados presos à cintura por argolas e uma corrente, tiras de couro ou pano e, como todas as outras joias permitidas para mulheres negras naquela época, só eram usadas pelas já libertas, mucamas, amas de leite e escravas de ganho. Estas últimas tinham permissão para ir e vir, vendendo frutas, verduras e quitutes nas ruas, geralmente sobre tabuleiros. A maior parte do dinheiro das vendas ia para o dono. O pouco que sobrava podia ser usado para comprar roupas, joias, enfeites, tudo muito bem delimitado pelos brancos e, mais importante, para comprar a alforria, o direito à liberdade. As que conseguiam deixar de serem escravas, em sua maioria, mantinham e prosperavam em seu comércio, e faziam questão de expor e ostentar essa condição em suas vestimentas de tecidos luxuosos, rendas finas, sob sofisticados panos da costa de África, cobertas de pulseiras, braceletes, colares, anéis, brincos, cada vez mais exuberantes e exóticos, em ouro, prata, marfim, coral, madeira, cobre, e hoje notabilizadas na joalheria brasileira e conhecidas em todo o mundo como “joias de crioulas”.
As “joias de crioulas” apresentam diferentes tamanhos e ornatos, mas sua principal característica sempre foi o exagero na quantidade usada de uma única vez. Podiam ser luxuosas ou de confecção simples, desde que fossem volumosas e brilhantes. Muitas escravas usavam joias colocadas pelos seus próprios senhores, que desejavam assim expressar publicamente posição social, poder e posses. Para as libertas, as joias e as vestes exuberantemente sincréticas e identitárias, significava burlar e enfrentar as determinações dos escravagistas brancos. Roupas luxuosas, joias da ourivesaria europeia eram proibidas para negras e negros. Os escravos não podiam usar sapatos, só os libertos.
Todas eram também amuletos de proteção e expressão de reverência. Cada uma possuía uma função e seu poder simbólico específico, mas nenhuma das “joias de crioula” supera a mística poderosa do balangandã, assim chamado por causa do barulho que fazia quando suas portadoras se movimentavam, fazendo as pecinhas da penca balançarem e baterem ritmadas umas nas outras e na nave, a estrutura em forma de navio em que elas ficam penduradas. Sua composição era inteiramente pessoal, apesar dos elementos representativos serem semelhantes e alguns balangandãs chegavam a conter mais de 50 pecinhas, entre eles, miniaturas de peixe, arco, flecha, machado, espada, figas, cachinhos de uva, chaves, romã, dentes, moedas, argolas, crucifixos, miniaturas de Nossa Senhora, saquinhos com pós mágicos. A disposição na cintura – regida pela Orixá Oxum, Deusa da Fertilidade na crença Iorubá – dava-se por meio de argolas individuais, tiras de couro e correntes de prata, e os berloques possuíam leitura simbólica intencionalmente organizada e sacralizada em rituais especificamente destinados à sua portadora. Só então podiam ser utilizados nas ruas.
FUNDAMENTO ANCESTRAL
Segundo alguns autores, a origem dos balangandãs relaciona-se com a sociedade secreta Ogboni, conselho de altas funções, uma espécie de corte de justiça do império de Oyó e dos reinos iorubás, que tem Oxum como Orixá protetora e cujos anciãos usavam na cintura uma peça chamada edan. Esse adereço é uma corrente de cerca de 30 cm em cujas duas extremidades há um pequeno bastão de bronze: um representa o sexo feminino, outro, o masculino.
Há exemplares das “joias de crioula”, incluindo os balagandãs, nos acervos do Museu Nacional de História, e outros, como o museu Carlos Costa Pinto. Nenhum deles, principalmente o segundo, consegue transmitir na forma e contexto das exposições a significação do protagonismo da mulher negra na Bahia na luta contra a escravidão. Para ver e viver isso, é preciso ir no mês de agosto a Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, a 110 quilômetros de Salvador, onde nasceu Mãe Beata de Yemonjá. É quando a Irmandade da Boa Morte realiza a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte. No terceiro dia das festividades, as senhoras descendentes de escravas trajam suas becas, usam as joias, os balangandãs herdados das mulheres de suas famílias que ficam tutelados nessa congregação de mais de duzentos anos que representa a ancestralidade dos povos africanos escravizados e o papel de enfrentamento político, sócio-econômico e religioso das negras.
A atuação das primeiras Irmãs da Boa Morte teve significado político, social e, significativamente, religioso. Segundo Pierre Verger (1992), foi como organização advinda das mulheres adeptas à confraria de Nossa Senhora da Boa Morte que teria sido fundado, no início do século XIX, o primeiro Candomblé Ketu de Salvador. A partir de 1820, a Irmandade se expandiu para Cachoeira, cidade onde ainda hoje preserva seus rituais públicos e secretos. Sobre sua criação, Dona Estelita de Souza Santana, juíza perpétua da Irmandade, falecida em 2012 aos 104 anos, declarou: “Foi uma promessa que os escravos fez na luta, no sofrimento, que eles alcançassem a liberdade que a morte seria desaparecida, porque a morte é o sofrimento e a vida é glória. E a glória é para sempre”. Apesar de suas raízes estarem ligadas a Salvador, foi em Cachoeira que a irmandade prosperou com a luta das mulheres negras contra o regime escravagista, comprando cartas de alforria e oferecendo fuga aos escravos, além de preservar os rituais das religiões de matrizes africanas, sob o manto do sincretismo mantido até os dias de hoje. Nos tempos da escravidão, elas faziam a procissão pedindo o fim da escravidão para Nossa Senhora da Boa Morte.
Com mais de dois séculos de história, as irmãs mantêm a tradição distante de possíveis modificações em sua estrutura. A Irmandade é integrada somente por mulheres com mais de 50 anos, negras, descendentes de escravos e todas devem ser praticantes do Candomblé e do Catolicismo popular. A parte pública da Festa da Irmandade tem fortes traços sincréticos e recebe influências da religião católica e do candomblé. Alguns dias antes de começar a Festa da Boa Morte, as integrantes da irmandade saem pelas ruas da cidade pedindo esmola para comerciantes, turistas e moradores. Esse ritual faz parte das obrigações das irmãs e é considerado um ato de fé e humildade que devem cumprir. O objetivo é arrecadar doações para a realização da festa.